Chico Buarque de Samaria

sábado, 1 de maio de 2010 00:25 Postado por Marcos Nunes
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Texto escrito para avaliação da matéria Teologia do Século XXI do Seminário Teológico Batista Carioca em 2008.


No mês dos 64 anos de um dos mais respeitados artistas da nossa cultura brasileira, Francisco Buarque de Holanda, resolvi aceitar o desafio de navegar numa aventura transcultural sobre a maneira como Jesus iria relacionar-se com a nossa cultura brasileira caso vivesse em nossos tempos. Alias, será que Ele sairia de Israel, da sua cultura, será que se daria ao trabalho sentar-se em nossas rodas de conversa, em nossas praças, na beira do mar ou dos rios? Será que Ele ouviria o que temos a dizer, escrever, cantar, tocar e encenar do nosso jeito Tupiniquim? Isso que tentarei responder no final!

Bem, sei que não estou sozinho no meio evangélico brasileiro quando me disponho a me abrir às manifestações culturais populares do nosso país, mas também sei que não estou com a maioria, nem com o mais populares no meio. Lembro-me agora que os princípios batistas que, quando falam do governo da igreja, dizem que "nem a maioria, nem a minoria, nem tão pouco a unanimidade, refletem necessariamente a vontade divina"[1]. 

Sei que
Ed René Kivitz me defenderia, caso fosse acusado de heresia, lançando mão de dois princípios da Reforma, a saber: a "Graça Comum" e o a "Imago Dei". Ele diria que a "Graça Comum" é a base para pensarmos que "a bondade, o governo e a instrumentalidade de Deus"[2] também influenciam pessoas que estão" à parte do conhecimento e do compromisso com o todo da revelação bíblica"[3] e a "Imago Dei" nos garantiria que todo ser humano é "capaz de expressar o ético e o estético divino"[4]. Sei também que Ariovaldo Ramos me defenderia, baseado em Mateus 28:19, dizendo que existe uma distinção entre a conversão de inúmeros indivíduos de uma nação e a conversão de uma nação como complexo cultural, por tanto, diria ele: "reconhecemos que uma nação está se convertendo quando esta nação passa a usar sua maneira própria de contar as suas mazelas para falar dos benefícios de servir a Cristo "[5]. 

Os dois argumentos são excelentes e são base para minha argumentação teológica, contudo, me parece que o maior motivo pelo qual o Brasil não experimenta esta abertura teológica-cultura não diz respeito apenas a ideia de que alguém que não tenha conhecimento bíblico não possa fazer algo interessante (Graça comum e Imago Dei) ou na ideia de demonização da nossa própria cultura local (Conversão da nação) e sim no fato de que a maioria cristã fundamentalista tem a ideia de que eles mesmo representam a matriz pronta e acabada da maneira correta de viver e servir a Cristo e que andar por outros caminhos significa literalmente desviar do "Caminho". 

O Circo Místico 
(Chico Buarque - Edu Lobo) 

Não 
Não sei se é um truque banal 
Se um invisível cordão 
Sustenta a vida real 

Cordas de uma orquestra 
Sombras de um artista 
Palcos de um planeta 
E as dançarinas no grande final 

Chove tanta flor 
Que, sem refletir 
Um ardoroso espectador 
Vira colibri 

Qual 
Não sei se é nova ilusão 
Se após o salto mortal 
Existe outra encarnação 

Membros de um elenco 
Malas de um destino 
Partes de uma orquestra 
Duas meninas no imenso vagão 

Negro refletor 
Flores de organdi 
E o grito do homem voador 
Ao cair em si 

Não sei se é vida real 
Um invisível cordão 
Após o salto mortal 
1983 © - Marola Edições Musicais Ltda

A música de Chico Buarque e Edu Lobo retrata na linguagem da Música Popular Brasileira aquilo que é inerente a todo ser humano no que diz respeito ao mistério da vida, da morte e do destino do homem. Temas profundamente relacionados à teologia e a humanidade em si! Mas os protestantes fundamentalistas teimam em restringir ao seu espaço social religioso. 

Quando olho para o questionamento de Chico Buarque, uma passagem bíblica me vem mente e quero compartilhá-la. A famosa passagem da mulher samaritana que questiona a Cristo a respeito do lugar correto para adoração. Tradicionalmente a passagem é conhecida como aquela que começa em João no capítulo quatro, versículo primeiro e vai até o versículo trinta. Mas para mim a perícope começa quando Jesus fica sabendo que os fariseus tomaram conhecimento de onde Ele estava e, por tanto, Ele decide sair da Judéia e ir para Galiléia[6]. Para mim essa história começa quando Jesus foge dos religiosos que se pretendem donos da verdade e vai para outro lugar, outros caminhos. 

O caminho de Jesus sempre teve abertura para encontros com outras culturas, outras opiniões e outras maneiras de ver. Não é sem motivo que ele tem um encontro com esta mulher da cidade de Samaria, mas o que representa Samaria? Se analisarmos a história monárquica de Israel, especialmente a divisão entre o Reino do Norte, Israel, com a capital em Samaria e o Reino do Sul, Judá, com capital em Jerusalém entenderemos que o clima é de guerra entre estes povos, antes homônimos e agora antagônicos. Esta história dá conta que tudo estava pronto para que uma guerra fosse deflagrada e Deus escolhe um profeta, Semaías, para que a tal guerra não ocorresse, no entanto, desde então "os judeus não se dão com os samaritanos" [7]. 

Imagine agora que Jesus passou mais de trinta anos ouvindo seus amigos e homens mais velhos dizer que os samaritanos não prestavam, imagine que quando Ele visitava o templo e conversava com os doutores da lei e eles diziam que os samaritanos não sabem onde adorar, pois segundo eles somente em Jerusalém se poderia adorar, o que é desmentido mais tarde. 

Para responder aos questionamentos daquele ser humano Jesus não fez caso da condição dela de mulher e de samaritana, nem tão pouco da dEle de homem e judeu, a necessidade do outro no que tange a conhecimento da maneira correta de agradar a Deus moveu Jesus de tão grande compaixão que Ele transpôs todas as barreiras sociais que se interpunham entre eles. 
Recapitulando: Aquele ser humano era uma mulher, ela era samaritana e mais adiante vemos que ela não tinha uma vida afetiva muito estável[8] e nada disso, segundo Jesus, seria impedimento para que ela ouvisse e fosse ouvida a respeito da maneira mais correta de adorar a Deus, nada disso seria impedimento para que houvesse um diálogo entre as matrizes de culturas diferentes a respeito da necessidade comum, de falar de Deus. 

Por tanto eu defendo que nós, cristãos protestantes brasileiros adotemos uma postura mais aberta e estejamos prontos a ouvir tudo aquilo que nosso povo tem a dizer e a questionar, não com o interesse de detectarmos seus erros mais patentes e acusá-los, antes no desejo de nos aproximarmos cheios de compaixão e respeito, prontos a saciá-los de uma água que não se esgota. Precisamos fazer com que este povo não tenha mais sede e não tente mais buscar saciar sua sede nos poços de Jacó. Precisamos fazer com que essas pessoas tenham dentro em si uma fonte a jorrar.


Para que isso se torne uma realidade precisamos dar mais ouvidos a cultura popular brasileira, precisamos ouvir mais MPB


Forte Abraço!

Marcos Nunes 

[1] Cathryn Smth, Princípios Batistas, Ponto 4.4 Igreja.Seu governo 
[2] Ed René Kivitz, Outra Espiritualidade, Pág 227 
[3] Ed René Kivitz, Outra Espiritualidade, Pág 227 
[4] Ed René Kivitz, Outra Espiritualidade, Pág 228 
[5] DVD Nossa Música Brasileira – vol 2, Sepal – Palestra de Ariovaldo Ramos 
[6] João 4:1-3 
[7] II Crônicas 11:1-4, João 4:9 
[8] João 4:16-18


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